ARTIGOS

CRIMES HEDIONDOS E A LEI N.º 11.464/07

Autor: Olaci Soares (OAB/SP 301.365)

1 – PREÂMBULO

Normalmente, todo aquele que se aventura a transportar qualquer aspecto do presente tema – crimes hediondos - para o cabedal dos debates, em algum momento desta trilha, indeclinavelmente, deparar-se-á no espinhoso e movediço terreno das discussões ardorosas.

Na verdade, poucos institutos despertaram (e ainda despertam) tanta atenção na ambiência jurídica como o dos delitos em testilha, posto que de fato as implicações todas que se agregam em seu bojo já são o quanto bastam, de per si, para justificar tamanha celeuma que tal temática suscita.

Destarte, não obstante a explanação que ora nos propusemos a perfazer se dirija de forma precípua aos enleios que a Lei nº 11.464/07 trouxe para o ordenamento jurídico pátrio, temos a consciência de que não é possível compreendê-los sem uma descortinada, ainda que rápida, no contexto no qual estes se inserem, uma vez que tal dispositivo legal fez alteração, quiçá definitiva, num dos aspectos mais conturbados na lei dos crimes hediondos, id est, na possibilidade de progressão para regime menos gravoso.

Isto porque, a fim de decifrar a urdidura de qualquer assunto necessário se faz, primeiramente, localizar-se dentro deste, para somente daí projetar qualquer tipo de contribuição para o cadinho das idéias. Buscando égide na analogia, seria como se tentar entender um determinado país sem antes abordar o continente no qual ele se encontra, tampouco sua história e outras tantas implicações que, assomando-se, compõe o todo que esse país é hoje.

Assim, cabe salientar, de plano, que a famigerada Lei nº 8.072/90 não se transpôs em nosso ordenamento jurídico sem um escopo a lhe dar azo. E seu fundamento adveio de previsão estabelecida em nossa Carta Magna, nos termos do seu art. 5º, inciso XLIII, o qual dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

Perceba-se, antes de tudo, que o vaticínio do que seria posteriormente a Lei nº 8.072/90 veio expresso dentro do contexto dos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição, local que, consoante se sabe, estão inseridos os “instrumentos imprescindíveis e inexoráveis ao bem-estar dos indivíduos que compõe a sociedade”, onde se torna cristalino que a intenção do legislador foi demonstrar-se zeloso com a segurança pública, alçando tal instituto em elevado grau de valoração, tudo como reflexo da intensa onda de violência que também permeava a sociedade à época, situação que foi muito explorada pelo sensacionalismo midiático, o que acabou por via de conseqüência afetando a opinião pública.

Estava, assim, preparado o cenário ideal para o advento da Lei dos crimes hediondos, isto como se uma resposta Estatal mais acentuada no tratamento dispensado a determinados crimes, fosse de fato resolver tão complexo problema social. Aliás, o próprio vocábulo “hediondo” já traz em si a idéia de algo repulsivo, monstruoso, cruel, repugnante etc. E em seu rol de delitos estão elencados aqueles que, pelo menos na idéia do legislador, causam maior inquietação na sociedade ordeira, representando comportamento de seres humanos aparentemente destituídos de valores morais, os quais encerram em si elevado grau de periculosidade.

O objetivo foi mesmo abancar aqueles indivíduos que via de regra cometem delitos com requintes elevados de crueldade e insensibilidade, e que desta maneira suscitam saliente aversão e repugnância quando observados a partir da ótica moral do homem médio.

De qualquer forma, aplaudida por muitos, mas também reprovada por muitos – e motivos de críticas de fato não faltavam, a bem da verdade – aí estava a reação do Estado, no espeque de demonstrar rigor e endurecimento no trato destes crimes “repulsivos”, servindo tal norma também como advertência ou intimidação àqueles que confabulassem praticar quaisquer dos delitos nela previstos (é o que a doutrina denomina “prevenção geral”).

Mas, retomando o assunto, é claro que não se resolve problema gravoso como a falta de segurança tão somente pela disseminação de temor nos malfeitores, maiormente pela simples promessa de tratamento penal mais rigoroso. A solução requesta muito mais do que isso, e por certo a discussão deveria ser bem mais ampla, abrangendo vários setores da sociedade, no sentido principal de detectar e combalir eventuais causas de condutas anti-sociais, como a desigualdade social, ausência de infra-estrutura etc.

Porém, conforme o costumeiro e surrado em situações tais, optou-se pela solução mais simples, categórica e de apelação popular, em detrimento de políticas públicas de maior eficiência.

De qualquer forma, isto é o que se tinha mais a ressaltar acerca dos eventos que se descortinaram desde a criação da lei dos crimes hediondos. Agora, segundo nos transparece, a discussão em testilha pode se sustentar por seus próprios fundamentos.

2 – O REGIME INTEGRAL FECHADO

Assim, a partir deste modesto e despretensioso compêndio, soergue-se válido neste instante ingressar no fulcro proposto no título do presente artigo.

Deste modo, não é despiciendo salientar que um dos aspectos mais polêmicos da lei dos crimes hediondos e também um dos que causou mais contendas, tanto entre os doutrinadores como na jurisprudência, e tudo em razão de uma única palavra nele contida, é o dispositivo elencado no seu artigo segundo, parágrafo primeiro, que assim dispunha:

“Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

(...) omissis

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.” (grifei).

Indubitavelmente, as implicações resultantes deste singelo vocábulo supra frisado são imensas. Isto porque, através dele, o legislador simplesmente aboliu a progressão de regime aos condenados por tais crimes.

Saliente-se, inicialmente, que a progressão para regime menos gravoso foi uma maneira encontrada pelo Estado - a partir de pensamentos políticos, filosóficos e jurídicos idealizados desde o início século XIX - de transmitir ao condenado a expectativa de ser possível que este não permaneça completamente enclausurado durante o cumprimento de sua pena. Está textualmente previsto no artigo 33, § 2º do CP, ao prescrever que “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva (...)”.

Este direito o sentenciado adquire desde que cumpra determinados requisitos objetivos e subjetivos, como o cumprimento do interstício temporal mínimo de 1/6 da pena, e seu mérito e bom comportamento carcerário sejam favoráveis (conforme disposto nos artigos 33, § 2º do CP e 112 da Lei de Execuções Penais).

3 – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

Sem nódoa de incertezas, a progressão é forma de estimular o sentenciado a buscar remitência dos danos sociais causados por seu comportamento criminoso, consubstanciado, sempre, em uma espécie de recompensa advinda de sua eventual boa conduta carcerária e sua correção. E tudo com o escopo maior de ressocializar o indivíduo para que este aprenda disciplina e correção e, principalmente, que não venha futuramente a cometer novos delitos (é um dos aspectos da “prevenção especial”).

Sob outro prisma mais abrangente, é a aplicação prática do princípio constitucional da individualização da pena, de acordo com o artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal, identificada na intenção salutar de que diferenças de pessoas e de situações devem pressupor conseqüentemente tratamentos diferenciados ou, em palavras outras, aquele que perpetra crime mais gravoso deve ser apenado de forma mais enérgica do que o indivíduo que comete delito considerado de menor ofensividade.

Acontece que o legislador, ao prever na situação sub analise que a pena para quem cometesse crimes hediondos e assemelhados seria cumprida integralmente em regime fechado, aparentemente confundiu ser também uma forma de individualização a sua completa ausência!

Ao ordenar a integralidade do regime fechado para todos aqueles que cometerem tais delitos, engessou-se perigosa e imprudentemente o sistema, ferindo de morte o princípio constitucional em descortino na medida em que padronizou, para todos que fossem condenados, a mesma forma de cumprimento da pena, olvidando que a individualização penal pressupõe análise caso a caso, delegando, mesmo que minimamente, um certo grau de flexibilidade ao aplicador da justiça.

Aos presos por tais crimes, as conseqüências destas diretrizes não poderiam ser mais funestas, posto que pela letra da lei eles não tinham mais a mínima esperança de progredir de regime enquanto estivessem encarcerados, extraindo-lhes a tão salutar motivação para que se disciplinassem e conquistassem por seu mérito a possibilidade de se verem fora do cárcere antes do completo cumprimento da sanção penal aplicada.

4 – POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS CONFLITANTES

A partir deste contexto, houve uma grande dissensão tanto jurisprudencial quanto doutrinária, combalindo acerca da eventual inconstitucionalidade do preceito legal ora em estudo, sendo que a doutrina majoritariamente se posicionava pela inconstitucionalidade, como é o caso de NUCCI, ao ensinar que “o princípio da individualização da pena (art. 5. º, XLVI, primeira parte, CF) é claro ao dispor que a lei regulará a forma pela qual o legislador e o juiz tornarão particularizada a pena estabelecida para os tipos penais incriminadores. Assim, em primeiro lugar, ao elaborar as leis penais, deve o legislador ater-se à possibilidade de ao julgador escolher sanções diferentes para réus diversos, valendo dizer que a padronização é indesejável. Em seguida, ao aplicar, concretamente, a pena (quantum e regime de cumprimento), o magistrado deve buscar a sanção justa, conforme o grau de censura merecido pelo condenado. Portanto, não há viabilidade jurídica para o estabelecimento de penas ou regimes estandardizados”.

De outro turno, havia também posição adversa, como é o caso dos doutrinadores FERNANDO CAPEZ e MIRABETE, que pugnavam pela legalidade, o primeiro sob o argumento de que “não há que falar em ofensa ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI), uma vez que o próprio constituinte autorizou o legislador a conferir tratamento mais severo aos crimes definidos como hediondos, ao tráfico ilícito de entorpecentes, ao terrorismo e à tortura, não excluindo desse maior rigor a proibição da progressão de regime. Tratamento mais severo é aquele que implica maior e não igual severidade. Trata-se de mandamento superior específico para esses crimes, que deve prevalecer sobre o princípio genérico da individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI)”, e o segundo ressaltando que “o principal critério para a fixação da pena é a gravidade do crime e não a regra da individualização, que a relativiza. Assim, não padece de inconstitucionalidade o art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, que obriga o regime mais severo para os crimes que considera mais graves, por hediondez, impossibilitando a progressão”.

Interessante salientar que estes últimos argumentos foram desposados à época pelo Supremo Tribunal Federal, o qual desta forma também expressava entendimento favorável à constitucionalidade de tal dispositivo, não obstante a doutrina se manifestasse majoritariamente pela inconstitucionalidade.

A situação ficou ainda mais áspera e de difícil sustentação com a chegada ao ordenamento jurídico pátrio da Lei nº 9.455/97, a qual definiu o crime de tortura e estabeleceu em seu artigo 1º, § 7º, que o condenado por crime previsto nesta lei iniciaria o cumprimento da pena em regime fechado.

Percebe-se que no caso da tortura, o legislador permitiu o avanço do regime fechado para o semiaberto e até ao aberto, ao dispor que o sentenciado apenas principiaria o cumprimento da pena em regime fechado, donde por inferência se dessume que estava de fato consentida a progressão para os praticantes de delitos deste jaez.

Acontece, contudo, que o delito de tortura corresponde a um dos assemelhados aos crimes hediondos por força da própria disposição da Lei nº 8.072/90, onde a previsão é de regime integralmente fechado.

Diante destas disposições aparentemente contraditórias, a discussão ganhou novos matizes, até que passou a prevalecer o entendimento de que tal contenda poderia ser resolvida pelo princípio da especialidade, sendo que inclusive o Supremo Tribunal Federal adotou tal entendimento, editando a Súmula 698, que assim dispunha: “não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura”.

5 – O HABEAS CORPUS 82.959/SP

Todavia, remoto ainda estava o apaziguamento das contendas. O fato é que, empós muitas celeumas e altercações, em fevereiro de 2.006, o plenário do STF, julgando o Habeas Corpus 82.959, em apertada e surpreendente votação reconheceu como inconstitucional a impossibilidade de progressão para os crimes hediondos, sob a alegação de que tal dispositivo violava a Carta Magna.

Atente-se para o fato de que este posicionamento foi aferido em controle difuso de constitucionalidade, portanto sem efeito erga omnes.

Desta forma, devido à inexistência de vinculação obrigatória, muitos magistrados continuaram insistindo na integralidade do regime fechado, enquanto que, contrario sensu, muitos outros passaram a adotar a posição do STF, incidindo o regime fechado, agora sim, apenas para início de cumprimento de pena.

6 – APLICAÇÃO DO ARTIGO 112 DA LEP

E esta nova possibilidade para os crimes hediondos acabou sendo o nascedouro de outra questão problemática: na ausência de disposição legal que versasse a respeito do interstício temporal mínimo para a concessão da benesse progressiva no caso específico destes crimes, qual seria então a referência deste prazo mínimo de cumprimento da pena, a fim de que o condenado fizesse jus à progressão?

O desfecho foi que se passou a adotar o mesmo prazo de todos os outros crimes, id est, o cumprimento de um sexto da pena, nos moldes do artigo 112 da LEP.

Dessume-se, salta aos olhos, que mais uma vez houve uma enorme dicotomia na presente situação, posto que se equiparou, para efeito da determinação do prazo para o cumprimento de regime inicial fechado, um homicida a um furtador, ou um estuprador a um estelionatário, o que sem dúvida passou a representar outra manifesta e evidente desproporcionalidade. Mas foi o que de fato passou a se aplicar, e situações desde jaez configuram-se sempre nocivas pela incoerência jurídica que trazem em seu bojo.

7 – O ADVENTO DA LEI Nº 11.464/07

Imperante se perfazia, desta forma, uma resposta legislativa a fim de buscar novamente o equilíbrio, e ela veio em 29 de março de 2.007, através da Lei nº 11.464/07, a qual se inseriu no ordenamento jurídico pátrio com o propósito de dirimir de vez as contendas acerca deste assunto.

Assim, ela modificou o parágrafo 2º do art. 2º da lei de crimes hediondos, o qual passou a dispor:

“Art. 2º. (...)
§ 2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.”

Conforme se pode aquilatar, a preocupação maior foi restabelecer, na legislação pátria, o equilíbrio, e assim garantir a proporcionalidade na aplicação da progressão de regime prisional. Desta maneira, ficou equilibradamente estabelecido o tipo específico de tratamento legal de acordo com o gênero de delito cometido.

Por conseguinte, para os crimes hediondos e equiparados, legalmente não mais proibida está a progressão. Embora inicie o cumprimento da pena obrigatoriamente em regime fechado, o condenado tem a expectativa de que, a partir do seu mérito e comportamento carcerário, mais o espaço temporal mínimo, ele pode progredir de regime.

Quanto ao critério objetivo, a regra a partir desta lei fica exclusivamente adstrita ao estabelecido no parágrafo acima, onde houve ainda uma subdivisão de tais crimes de acordo com a primariedade ou não do sentenciado: se primário, terá ele direito à progressão desde que cumpridos pelo menos 40% da pena em regime fechado; já para os reincidentes a exigência é mais austera, requerendo-se o mínimo de 60% de efetivo período realizado em regime cerrado.

Já para todos os outros crimes, nada mudou, continuando válida a já citada regra geral de um sexto, estabelecida no artigo 112 na Lei das Execuções Penais.

7.1 – Discussão acerca dos crimes cometidos antes da vigência da Lei 11.464

Assim, não obstante a suposição de que com as modificações trazidas a descortino ao menos, aparentemente, a harmonia pousou e fez casa nas contendas, mais um questionamento havia ainda de ser resolvido. Isto porque, consoante já exposto, desde o Habeas Corpus 82.959, embora processado em controle difuso de constitucionalidade, muitos Tribunais passaram a considerar a efetiva possibilidade de progressão para os crimes hediondos e assemelhados. Porém, por falta de dispositivo legal específico a versar sobre o assunto, adotou-se como égide para a progressão a regra geral do artigo 112 da LEP, indiscriminadamente do crime praticado, hediondo ou não.

Ocorre que tal situação engendrou o seguinte questionamento: a lei nº 11.464/2007 entrou em vigor na data de sua publicação, em 29 de março de 2.007. Assim sendo, como ficaria a situação de todos aqueles que já estavam cumprindo pena desde antes desta data, ou então, mais geral ainda, como resolver a condição daqueles haviam cometido crimes hediondos antes da publicação desta lei?

Para se responder a esta questão havia primeiramente a necessidade de se estabelecer, de modo seguro, se a referida norma penal expressa condição mais benéfica ou mais prejudicial ao réu. Isto tudo para que ela seja sopesada de acordo com os arts. 5º, inciso XL da CF e 2º, parágrafo único, do CP, os quais preconizam o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. E assim, mais uma vez, houve uma dicotômica separação de posições, não obstante no escopo da busca pelo melhor direito aplicável ao caso.

7.2 – A nova lei é mais prejudicial

Primeiramente, insta salientar, há o consenso de que a data de 29 de março de 2.007, isto é, desde a publicação da lei em comento, estabeleceu-se o “divisor de águas” na questão sobre a possibilidade ou não de progressão para os crimes hediondos e assemelhados.

Sob este aspecto, a lei destacada encerrou a discussão que perdurava por quase duas décadas, posto que a partir dela legalmente era reconhecido que na legislação penal pátria ninguém mais iniciaria, em condições normais, o cumprimento da sanção penal sob a expectativa de cumpri-la em completo encarceramento, podendo progredir desde que atendidas condições pré-estabelecidas.

De outra ilharga, havia o posicionamento sustentando que as disposições trazidas pela novatio legis, no que se refere às condições para a progressão de regime, eram bem mais prejudiciais (lex gravior) que o tratamento penal precedente, conforme abaixo se explica, e, portanto seus efeitos não poderiam se projetar aos fatos pretéritos, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa (efeitos in pejus).

Sob este enfoque entendia-se que, desde a declaração de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/1990 pelo Supremo Tribunal Federal, no HC 82.959, inobstante realizado em via incidental de constitucionalidade, seus efeitos seriam erga omnes, e desta maneira o citado artigo já não tinha mais validade, não obstante ainda se manter vigente.

Desta forma e conforme já salientado, na ausência de norma específica sobre o assunto, muitos magistrados já aplicavam a regra geral, id est, o artigo 112 da LEP, como referência para estabelecer o tempo mínimo para progressão, e é cristalino que em situações tais esta nova sistematização legal representava disposição bem mais gravosa para todos aqueles que tivessem cometido crimes hediondos antes da lei 11.464/07, donde a melhor técnica jurídica para estes casos seria a consideração de que os efeitos da nova lei, in pejus portanto, aplicar-se-iam tão somente para os crimes praticados empós a publicação desta referida norma.

7.3 - A nova lei é mais benéfica

De outro turno, havia uma interpretação oposta, considerando que o novo preceito legal era mais benéfico em completitude, sendo novatio legis in mellius na medida em que estabelecia a progressão de regime em crimes aonde antes não havia, em absoluto, esta possibilidade.

Segundo este entendimento, haja vista que o HC 82.959 foi julgado a título de controle difuso de constitucionalidade, seus efeitos aplicar-se-iam apenas interpartes, maiormente porque não houve resolução do Senado Federal sob este aspecto, conforme dispõe o art. 52, X, da Magna Carta. Desta feita, faltaram requisitos legais para que a sua eficácia pudesse ser considerada plena e seus efeitos erga omnes.

Destarte, legalmente o que subsistia em termos de possibilidade ou não de progressão de regime prisional era, portanto, a disposição original da lei de crimes hediondos, que previa, conforme já ressaltado à mancheia, o cumprimento da sanção penal em regime integralmente fechado, e não o interstício temporal de apenas um sexto ao teor do artigo 112 da LEP.

Aliás, salienta esta corrente que naquele momento, com a aplicação indiscriminada deste artigo 112 também para os crimes hediondos, é que se constituía uma flagrante e clamorosa violação ao princípio da individualização das penas, uma vez que tal “indexador”, já utilizado para todos os outros delitos, passou a não mais diferenciar os crimes hediondos dos delitos comuns.

Perceba-se que novamente se utiliza como fulcro os artigos 5º, inciso XLVI da Constituição Federal e o artigo 59 do CP, só que desta vez, curiosamente, para defender posição contrária à salientada anteriormente.

Os defensores desta posição alegavam que, se antes a lei impossibilitava a progressão, agora o novo preceito legal permanente, emanado desta vez de poder competente para tal, previa textualmente a perspectiva desta e, mais importante, agora respeitando o princípio da individualização, na medida em que previa condições diferenciadas e mais severas para a progressão dos praticantes de crimes hediondos.

O que houve, portanto, foi que do ponto de vista legal um instituto jurídico que antes era obstruído, passou a ser legalmente aceito, porém com um acolhimento diferenciado dos delitos comuns, como deveria ter sido desde sempre, sob o entendimento de que aquele que perpetra crime mais grave deve sofrer sanção penal também mais gravosa, a fim de se diferenciar daquele que cometeu delito de menor gravidade.

Em conclusão, para aqueles que haviam conseguido por via judicial a concessão de progressão de regime na base de um sexto, tais decisões deveriam ser respeitadas. Contrário sensu, para todos os outros, apenados ou não, a nova regra para a progressão retroagiria aos fatos pretéritos, posto que posição mais benéfica que a anterior, uma vez que agora, indiscutivelmente, não mais cumpririam a pena integralmente em regime fechado.

7.4 - A Súmula Vinculante n. 26

Com a finalidade de encerrar de uma vez por todas tal discussão, na data de 23 de dezembro de 2.009 foi publicada a Súmula Vinculante n. º 26, aprovada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão que havia se realizado em 16 de dezembro, com a seguinte redação:

"Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico".

Conforme se depreende, triunfou o entendimento que pugnava que a lei 11.464/07 somente se aplicaria para os crimes cometidos após a sua publicação, por considerar que, de fato, seus efeitos eram mais gravosos em face do regimento anterior.

Assim, ao dispor que o “juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990”, dessume-se que definitivamente se optou pela consideração de que a ausência de validade do dispositivo anterior, o qual implicava em regime integral fechado, não fornece mais azo para discussão acerca da sua possibilidade ou não e, da mesma maneira, sendo inconstitucional este artigo, a regra a ser aplicada deve mesmo ser a geral, de um sexto, conforme o que já vinha de fato acontecendo.

Ora, se quem praticou crime hediondo ou assemelhado antes de 29 de março de 2007, data da publicação da lei 11.464, ganhou o direito de progressão de regime prisional com o cumprimento de apenas um sexto da pena em regime fechado, ficou evidente o entendimento, por parte do STF, de que a sistematização contida nesta nova lei representa mesmo situação mais gravosa, ao se dispor ambas em cotejo, na medida em que a posterior prevê em seu bojo condições mais rígidas.

8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Empós o perfilar de todos estes acontecimentos, insta salientar e novamente requesta-se pela advertência elencada na gênese da presente explanação: não se olvide de que inexiste modo de se compreender o hoje sem a erudição dos detalhes tantos que, somados, formam o todo descortinado na realidade atualmente presente.

Cada uma das posições que aqui desfilaram encontraram em seu percurso os respectivos defensores ardorosos, posicionados estes em todos os níveis aonde existem operadores do direito, e custaram esforços apaixonados no árduo caminho da busca do que é bom e justo. Aliás, cremos ser esta a função precípua do direito, sendo a manifestação da ars boni et jus, de modo que eventuais exageros ou permissividades sejam aquilatados a fim de que se encontre, ao final, o equilíbrio.

Uma observação mais atenta dos acontecimentos aqui narrados demonstrará a percepção de que houve, mutatis mutantis, uma que espécie de “maniqueísmo jurídico” não apenas por parte do legislador, mas também da doutrina e da jurisprudência, na medida em que num momento optou-se pelo nada, quando se extinguiu completamente a possibilidade da progressão de regime prisional para os criminosos mais perigosos. Aceita majoritariamente à época, tanto houve quem apoiasse tal ideologia que ela foi aplicada como sinônimo de justiça durante muitos anos, até que em um determinando momento de seu caminho as vozes dissonantes se fizeram ouvir cada vez mais intensamente.

Neste mote, inobstante lenta e vagarosamente, robustecida foi se tornando a posição contrária ao regime integral fechado, até que esta outra ideologia começou se encorpar cada vez mais dentro do ordenamento jurídico pátrio. E tanto assim alçou asas que o resultado disto foi que, num segundo momento, esboroou-se de morte a disposição antiga, a qual submergiu no mar agitado por suas próprias e jurídicas incoerências, sob o escólio do HC 82.959.

Se a norma precedente imergiu, ocorre porém que o fez lentamente, sendo ainda aplicada muitas vezes, principalmente por falta de disposição legal específica sobre o assunto, posto que a única égide a servir amparo naquele momento era o mesmo dispositivo utilizado para todos os outros delitos, e assim nova situação se perfez: se antes era o “nada” quem violava o princípio da individualização da pena, a partir deste momento era exatamente o contrário que se sucedia, posto que o elevado beneplácito apresentado também se compunha de curiosa violação ao mesmo princípio.

Imperava, pois, a necessidade de uma norma legal que combalisse a instabilidade que se projetou em nosso ordenamento jurídico e trouxesse um equilíbrio sobre estas posições antagônicas. E esta necessária busca pela proporcionalidade entre o crime e a sanção penal correspondente adveio agasalhada na lei 11.464/07, a qual finalmente estabeleceu uma posição mais harmoniosa para o dilema que se erigia até então.

Alguns detalhes, claro, precisavam ainda ser lapidados, e tais se fizeram na forma da súmula vinculante n. 26, que tem seu escopo no desejo de se colocar um ponto final nesta situação toda que, conforme poucas vezes se viu em terra pátria, suscitou tanta celeuma jurídica.

Espera-se agora que, finalmente, as discussões hodiernas sobre este tema se restrinjam apenas às preciosas lições que ele encerra a todos aqueles que estudam e vislumbram o direito de forma apaixonada, e neste instante, como a sintetizar tudo o que foi explanado neste trabalho, é de pertinência valer-se do escólio do eminente doutrinador FERNANDO PEDROSO, ao recordar o saudoso magister magnus NELSON HUNGRIA, “para quem a contenda entre as posições extremadas é o prelúdio de sempre ao advento ou retorno do meio termo, que é a expressão do equilíbrio ou da justa medida”.


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